Edison Veiga De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
“Brasil fecha a porta para Sabin depois de divulgação de dados de pólio”, escreveu o jornal The New York Times em 17 de abril de 1980. A reportagem contava que o médico e cientista americano-polonês Albert Bruce Sabin (1906-1993), o criador da vacina contra a poliomielite, havia sido trazido ao Brasil para ajudar a conter a epidemia da doença — mas acabou sendo “derrotado por outro mal brasileiro: a burocracia governamental”.
A ligação de Sabin com o Brasil vinha de duas décadas atrás e havia sido coroada por um casamento. Desde que desenvolveu, em 1960, sua famosa vacina para combater a paralisia infantil, aplicada oralmente e por isso chamada popularmente de “gotinha”, o cientista esteve no Brasil por diversas vezes ministrando palestras, oferecendo consultorias e contribuindo para os esforços de erradicação da doença. Em 1971, em uma festa em sua homenagem realizada no Rio, conheceu a brasileira Heloisa Dunshee de Abranches (1917-2016). Um ano depois, estavam casados.
O cientista acompanhava atentamente a evolução da doença viral infecciosa pelo mundo, mas, por diversas vezes, enfatizava uma preocupação afetiva com o que ocorria no Brasil. Segundo afirmou a diversos jornalistas na época, quando vinha ao país, as autoridades acabavam impelidas a realizar campanhas de vacinação em massa; o problema era que o esforço, entretanto, não tinha continuidade nos anos seguintes — e os casos de poliomielite voltavam a aumentar.
Em 1973, conforme declarou, ele leu “com satisfação” um relatório da Organização Mundial da Saúde que afirmava que o Brasil havia reduzido em 86% a incidência da doença. Logo concluiu que sua gotinha vinha dando resultado.
A confusão com o governo
Em 1980, Sabin veio para mais uma temporada de trabalhos no Brasil. Havia um surto de poliomielite em Santa Catarina. De acordo com o New York Times, o cientista tinha sido convidado pelo então ministro da Saúde, o médico e político Waldyr Arcoverde (1932-2017). Mas, conforme registraram jornais brasileiros da época, o governo afirmava que Sabin tinha se oferecido para o trabalho.
Na ação pontual em Santa Catarina, tudo deu certo. Sabin conduziu a campanha de vacinação em massa das crianças em idade escolar. Mas logo começaram as divergências com o governo de João Baptista Figueiredo (1918-1999), o último comandante da ditadura militar brasileira.
O cientista organizou um painel com mais de 25 mil crianças em idade escolar. Ele queria analisar os efeitos dos esforços da última década no combate à doença, tendo em mente aquele relatório da OMS que havia lido em 1973. Segundo o New York Times, foi aí que ele concluiu que havia problemas no sucesso anunciado naquela época.
Sabin aplica vacinação durante visita ao BrasilAcreditando que os dados reportados eram falsos, ele escreveu uma dura carta ao presidente da República, afirmando que “a julgar pelos meus estudos, acredito que haja pelo menos 10 vezes mais pólio no Brasil do que aquilo que vem sendo relatado pelas autoridades de saúde”.
“O Brasil precisa de um programa nacional de vacinação contra a poliomielite, organizado de forma altamente eficiente e realizado anualmente”, pontuou. “No entanto, esse trabalho continua sendo impedido por entraves burocráticos e funcionários não confiáveis.”
A polêmica estava armada. Em 29 de março de 1980, o jornal O Estado de S. Paulo publicou que, de acordo com um funcionário não identificado do Ministério da Saúde, Sabin havia sido convidado para atuar no país porque havia a ideia de “homenageá-lo”, mas ele “não soube comportar-se”.
Epidemiologistas ouvidos pela reportagem, também sem serem identificados, afirmavam que o cientista criou a polêmica em busca de “promoção pessoal”.
Sabin disse ter encontrado incongruências sérias entre duas fontes de dados oficiais: os números da Fundação Serviço de Saúde Pública (FSESP), que teriam sido utilizados para comunicar a OMS, eram bem inferiores aos registros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O cientista concluiu que o FSESP contabilizava apenas 12% das ocorrências, em comparação ao IBGE, e classificou como “lixo” o trabalho do primeiro
Conforme levantou o jornal O Estado de S. Paulo, em reportagem de 1º de abril daquele ano, os dados que precederam o relatório da OMS confirmavam a tese de Sabin. De 1969 e 1972, o IBGE havia registrado, ano a ano, respectivamente 11.832, 11.545, 31.111 e 6.170 casos da doença. No mesmo período, o FSESP relatou 1.136, 2.270, 2.206 e 1.429 ocorrências.
Em 3 de abril, o mesmo jornal publicou uma outra reportagem na qual o Ministério da Saúde admitia problemas com os registros. “Estávamos perdendo a batalha contra a poliomielite por falta de organização e não de estatísticas ou de vacinas”, afirmou o então secretário-geral do ministério, o dentista e político Mozart de Abreu e Lima. Ele concordava que havia “ausência de registro” de casos, mas enfatizou que a afirmação do cientista de que existiriam 10 vezes mais casos era “exagerada”.
Portas fechadas
Quando insistiu que as estatísticas fornecidas nos anos 1970 pelas autoridades brasileiras à OMS estavam erradas, Sabin viu todas as portas em Brasília fechadas para ele. E passou a ser alvo de uma campanha difamatória. Segundo jornais da época, acusaram-no de estar obsoleto e desacreditado no meio científico e, ainda, autoridades chegaram a apontar que ele, “um judeu americano”, havia sido mandado para o Brasil por “grupos sionistas”, “para ganhar espaço na imprensa, agora dedicada à cobertura da Organização para a Libertação da Palestina”.
Sabin decidiu voltar aos Estados Unidos sem nem sequer se despedir do alto escalão do governo, com quem havia trabalhado. Então diretor de redação da revista Veja, o jornalista José Roberto Guzzo sentenciou, sobre o episódio: “nosso problema não é paralisia infantil, mas paralisia de adultos”.
O cientista não guardou para si o rancor. Afirmou que as autoridades brasileiras eram culpadas de “negligência profissional grave” e “deixaram o Brasil sob a ameaça permanente de epidemias de poliomielite”.
Secretário Nacional de Ações Básicas de Saúde durante a gestão de Arcoverde, o médico João Baptista Risi Júnior garante à BBC News Brasil que não houve qualquer intenção do governo militar de maquiar os números da paralisia infantil.
“Essa afirmação é totalmente falsa”, afirma ele, em nota encaminhada à reportagem. “A polêmica entre Sabin e o Ministério da Saúde decorreu de um fato insólito: a Organização Mundial de Saúde havia publicado dados incorretos sobre o Brasil referentes ao período 1968 a 1972, e a discrepância dos dados oficiais foi usada por Sabin como justificativa para realizar a sua pesquisa.”
“Não foi possível convencê-lo de que os dados publicados pela OMS derivavam de um sistema de informação paralelo, de caráter experimental, que o ministério havia desativado muitos anos antes após comprovar a sua completa inconfiabilidade”, diz o médico.
“Resultou que as declarações do cientista, manifestando o seu inconformismo com a suspensão da pesquisa que ele havia proposto, foram ardilosamente utilizadas pela grande imprensa nacional para denegrir a imagem pública do governo militar, que então enfrentava crescente oposição política.”
Segundo Risi Júnior, a colaboração de Sabin “tornou-se conflitiva após sua revelação de um objetivo pessoal: realizar, antes do primeiro Dia Nacional de Vacinação, uma pesquisa de âmbito nacional para estimar a magnitude da poliomielite nos Estados brasileiros”. O Ministério da Saúde considerou tal esforço desnecessário e inviável.
Já de acordo com a médica Dilene Raimundo do Nascimento, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e organizadora do livro A História da Poliomielite, Sabin veio ao Brasil convidado pelo governo para assessorar a equipe envolvida na criação do programa dos Dias Nacionais de Vacinação. Mas, diz ela à BBC News Brasil, o cientista “discordou das informações que o Ministério da Saúde dispunha sobre a poliomielite no Brasil e propôs uma pesquisa de prevalência de sequelas em escolares, abrangendo todo o país”.
“Essa pesquisa necessitaria de vultosos recursos e tempo para ser realizada. Os técnicos do Ministério da Saúde consideravam que os dados disponíveis permitiam identificar o problema e definir diretrizes básicas para um programa de controle da doença que era urgente”, relata ela. “Essa discordância entre Sabin e os técnicos criou uma polêmica. O conflito foi bastante sério, mas o ministro da Saúde se manteve no cargo e implementou os Dias Nacionais de Vacinação.”
Pesquisador de História da Saúde Pública e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o historiador André Luiz Vieira de Campos diz não duvidar que tenha havido, por parte do governo militar, uma tentativa de tornar os números menos desfavoráveis.
“Na década de 1970, isso seria muito provável, tendo em vista que se tentou esconder a epidemia de meningite”, comenta ele à BBC News Brasil, em referência ao surto dessa doença ocorrido em 1973, cuja divulgação foi abafada pelas autoridades.
“Entretanto, desde o fim dos anos 1970, com o governo Figueiredo, o Ministério da Saúde estava de fato comprometido com o controle e posterior erradicação da poliomielite”, completa o historiador.
Milhares de crianças dos EUA foram vitimadas pela pólio nos séculos 19 e 20.
A reportagem procurou o Instituto Sabin de Vacinas, instituição em Washington, nos Estados Unidos, responsável pelo legado do cientista. Questionada sobre as polêmicas de sua última passagem pelo Brasil, a assessoria da entidade enviou, à guisa de esclarecimentos, um artigo publicado em 2009 pelo periódico acadêmico American Journal of Public Health.
O texto elenca que, naquela ocasião, o governo brasileiro enfrentava “um momento político e economicamente difícil” e que a atuação de Sabin poderia imprimir um papel institucional de respaldo à administração federal. O artigo frisa que o cientista havia recebido carta branca do presidente Figueiredo e que, desde o início, acreditava que as estatísticas nacionais estavam subestimadas.
Ao longo dos trabalhos, relata o texto, Sabin adotou uma postura cada vez mais exigente, severa e arrogante. Ele passou a exigir do governo uma secretária bilíngue, mais espaço para escritório, suprimentos e melhorias para sua equipe. Por fim, a gota d’água parece mesmo ter sido sua obsessão em realizar uma pesquisa ampla em todo o país, antes do início dos Dias Nacionais de Vacinação.
Pólio no Brasil
Conforme conta Risi Júnior, autor do livro Poliomielite no Brasil: Do Reconhecimento da Doença à Interrupção da Transmissão, os primeiros registros da doença no país datam do início do século 20. “A primeira epidemia de poliomielite no Brasil foi descrita em 1911, na cidade do Rio de Janeiro, pelo pediatra Antônio Fernandes Figueira, que reuniu 49 casos adoecidos de 1909 a 1911”, descreve.
“Desde então passaram a ser registrados pequenos surtos da doença em vários pontos do país, destacando-se uma epidemia ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, em 1939, com 287 casos. Na década de 1950, a doença expandiu-se consideravelmente, tendo causado as principais epidemias registradas em toda a história da poliomielite no Brasil, com ápices no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Paraná. Entre 1950 e 1960 foram notificados oficialmente 6.493 casos nas capitais brasileiras — número considerado muito subestimado, em face da precariedade dos registros estão disponíveis.”
No Brasil, o personagem Zé Gotinha surgiu em 1986 como parte de uma campanha de vacinação contra a pólio.
Antes dos surgimento das vacinas — a Salk, com vírus inativados, de 1955, e a Sabin, de vírus vivos atenuados, em 1960 —, o único tratamento possível era dar assistência médica aos doentes na fase aguda e aos portadores de sequelas.
Com o advento da vacina, começaram políticas públicas para importação do produto e desenvolvimento de infraestrutura para a aplicação do mesmo na população. Risi Júnior conta que várias táticas foram empregadas, até chegar às campanhas maciças nacionais, como defendia Sabin.
Isso, aliás, passou a ocorrer logo após sua saída do Brasil, em 1980. Para o médico, foi uma “medida heroica” a instituição dos Dias Nacionais de Vacinação, duas vezes ao ano, simultaneamente em todos os municípios brasileiros.
“Cerca de 20 milhões de crianças foram vacinadas em cada uma dessas operações, visando a atingir todo o grupo etário alvo, inclusive indivíduos já vacinados. O impacto foi imediato”, afirma Risi Júnior.
As primeiras campanhas ocorreram em 14 de junho e 16 de agosto de 1980. Naquele ano, foram registradas 1290 ocorrências da doença no país. No ano seguinte, apenas 122. “E, em 1982, ocorreram, nacionalmente, somente 45 casos”, enfatiza a médica Nascimento.
Em 1983, a incidência da doença já estava no chamado “nível de controle”, ou seja, menos de 0,1 caso por 100 mil habitantes. “A introdução dessa estratégia foi um marco da história da poliomielite no Brasil e do controle de outras doenças evitáveis por vacinação”, completa Risi Júnior.
O último caso de poliomielite no Brasil foi confirmado em março de 1989, na Paraíba. A OMS certificou a erradicação da doença no país em 1994.
“Albert Sabin foi o idealizador da estratégia de vacinação em massa contra a doença”, reconhece o médico. “Ele sempre insistiu que a sua estratégia de vacinação era a única capaz de erradicar a poliomielite nos países em desenvolvimento.”
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