03 junho 2010

Poliomielite e síndrome pós-pólio

A pólio já foi paralisia infantil, poliomielite anterior aguda, febre polioviral, doença de Heine-Medin [Jacob von Heine, clínico alemão (1800-1879), Karl Oskar Medin, clínico sueco (1847-1927)]).(1) O nome não é de todo perfeito (pólio, em grego, cinzento; mielite, inflamação da medula); nem sempre a substância cinzenta medular é a mais comprometida, pois ocorrem lesões em outras áreas do sistema nervoso central. Conveniente que episódios sejam comentados, tendo em vista que ainda é registrada na Ásia e na África.

Lembranças esparsas dos anos 50, século passado. Cidadão de origem centro-europeia residente em São Paulo marcara viagem para os Estados Unidos. Desejava chegar ao hemisfério norte, saudável, corado do sol, relaxado física e emocionalmente para assegurar a boa aparência e o êxito nas transações comerciais; para tanto, dias antes foi à pesca no Pantanal mato-grossense. De volta a São Paulo, embarcou imediatamente para a América. Mas durante a viagem no Douglas DC-7 passou mal, interrompendo-a em Cidade do México onde desceu — em cadeira de rodas —, obrigando-se a regressar ao Brasil. Quando atendido no bairro da zona sul da capital paulista, nenhuma dificuldade para o diagnóstico: tetraplegia, os quatro membros paralisados.

A extração das amídalas — medida que evitaria a recorrência da angina —, foi extensamente praticada no Brasil. A cirurgia, agressiva, por vezes abusiva, em pleno inverno paulistano, predispunha à polioencefalite, à perda da consciência! Não bastante, identificavam-se mais fatores desencadeantes: injeções intramusculares, apendicectomias, insolação, exposição ao frio...

Aos tempos de calamidades simultâneas por diferentes agentes a distinção das doenças nem sempre era imediata. O saneamento básico só favorecia parte da população; consequentemente, a má qualidade de vida causava gastrenterite. Conquanto diarreia não figurasse entre os sinais da pólio, a desidratação avançada levava à flacidez da musculatura, criando dificuldades para o diagnóstico correto.

A poderosa exotoxina produzida pela difteria — prevalente na capital paulista — originava, remotamente, polineurite e paralisia comprometedoras da deglutição, fala e marcha. O alimento refluía pelo nariz; voz fanha transformava "bombom" em mommom, "bomba" em momma...

A raiva muda — forma clínica paralítica da raiva humana —, figurava entre opções na discussão de casos. Nada simples distinguir enfermidades com sintomas afins.

Denominação paralisia infantil? Impropriedade. Adultos — populares ou famosos — padeceram da enfermidade. Remadores jovens e vigorosos, surpreendentemente, justo ao final das competições esportivas, foram vítimas das formas mais graves de pólio.

Episódio notável foi protagonizado por Franklin Delano Roosevelt (1882-1945). A família passava férias de verão em Campobello, na costa escarpada atlântico-canadense. Aos 10 de agosto de 1921, aos 39 anos — esgotado após dia atribulado —, correu quilômetros antes de mergulhar nas águas gélidas da baía Fundy. À noite, arrepios de frio, febre e dores nas costas; ao terceiro dia, pernas paralisadas. Famoso médico diagnosticou-lhe coágulo sanguíneo e prescreveu-lhe massagens enérgicas, apressando-se, desde logo, na apresentação da "dolorosa": US$ 600, fortuna à época! Durante as três semanas seguintes o paciente piorou. Sua mulher, Eleanor, mais o amigo, Louis Howe, fizeram-lhe de tudo: escovar dentes, banhar, barbear, sondar, massagear... Só após 15 dias um especialista de Boston diagnosticou corretamente a pólio, depois da orientação agravante. Mas Roosevelt — tenacidade incomparável —, empenhou-se para reusar seus membros, particularmente, pela natação. Doze anos mais tarde, em 1932, assumiu a presidência dos Estados Unidos.(2) Reeleito mais duas vezes, teria articulado Pearl Harbor — a "porta dos fundos" —, para entrada na Segunda Guerra Mundial ao lado da Inglaterra e França contra os governos militaristas da Europa e Ásia.

A carga dos vírus selvagens em circulação na população era fora do comum. Iceberg, o melhor exemplo para estimativa de sua densidade; a ponta, as ocorrências paralíticas; a base, submersa, a imensidade das formas inaparentes. Em termos epidemiológicos, elevada capacidade de propagação sem, necessariamente, causar doença: infecciosidade alta, patogenicidade baixa.

Felizmente, a qualidade e a dedicação dos profissionais de saúde constituídos em equipe, treinados em doenças transmissíveis, neurologia, enfermagem e fisioterapia, foi fundamental para evitar mortes e reabilitar os casos graves de poliomielite bulbar com paralisia respiratória. No período, a Clínica Ortopédica e Traumatológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo não fugiu à regra, desempenhou papel fundamental. O Instituto dispunha do pulmão-de-aço, o instrumento de ressurreição da época (hoje peça de museu).

De lá para cá, a situação mudou. Para melhor. Captação, tratamento e abastecimento da água, coleta e tratamento de esgoto contribuíram para reduzir a transmissão por esse contingente de veículos. Surgiram as vacinas, Salk e Sabin. Com vantagens e desvantagens. Autoridades de saúde do país elegeram a solução conveniente — gotinha —, a amiga da criançada. Campanhas de vacinação têm erradicado a pólio da maioria dos países do mundo. Mas ainda é notificada na Índia e Nigéria. Trata-se agora de rediscutir a estratégia para assegurar de vez a erradicação.

Porém, após intervalo de 30-40 anos, 25% a 40% das pessoas que contraíram a doença, na infância, reapresentam sofrimentos comparáveis à distanciada fase aguda de outrora: dores musculares, fraqueza, novas paralisias, mas sem participação do vírus, afastada, portanto, a possibilidade de transmissão. A modalidade atual de queixas, retroativas, é a "síndrome pós-pólio".

Felizmente, cientistas nacionais que acompanham tais sucessos têm preparado pessoal habilitado para assistência caso a caso. Diante da ressurgência da questão — a de saúde coletiva de antigas raízes —, é notório o trabalho desenvolvido no setor neuromuscular na Universidade Federal de São Paulo — Escola Paulista de Medicina, sob orientação do médico paulistano Acary Souza Bulle de Oliveira. O tema já foi objeto de exposição no recinto da Assembleia Legislativa de São Paulo, ocasião em que esteve presente para dar o testemunho, de cidadão que passou pelo sofrimento na infância, Geraldo Nunes, repórter aéreo do jornal O Estado de São Paulo.

Arary da Cruz Tiriba. Médico sanitarista e professor titular aposentado (Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias) da Universidade Federal de São Paulo — Escola Paulista de Medicina (Unifesp-EPM). Ocupante da Cadeira 81 (Adolpho Lutz) da Academia de Medicina de São Paulo (Presidente Acadêmica Yvonne Capuano) e integrante da Diretoria Científica 2009-2010.



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